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Sonhei tanto contigo

(Poema de Robert Desnos. Tradução de Jorge Lúcio de Campos)  Sonhei tanto contigo  que tu perdes tua realidade. É ainda tempo de alcançar este corpo vivo e de beijar sobre esta      boca o nascimento da voz que me é cara? Sonhei tanto contigo  que meus braços habituados abraçando tua sombra à se     cruzar sobre meu peito não dobrariam a contorno de teu corpo,     talvez. E que, diante da aparência real do  que me ocupa e me governa      há dias e anos tornar-me-ei uma sombra sem dúvida.  Ó balanças sentimentais. Sonhei tanto contigo que não é mais tempo sem dúvida que eu desperte.      Durmo ereto, o corpo exposto a todas as aparências da vida e      do amor e tu, a única que conta hoje para mim, eu       poderia menos tocar tua fronte e teus lábios que os primeiros      lábios e a primeira fronte que vieram. Sonhei tanto, caminhei tanto, falei, deitei com teu fantasma que não      me resta mais talvez, e entretanto, senão ser fantasma entre os      fantasmas e mais sombra cem  vezes

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A vaidade oblitera a visão. Tola fui por um dia pensar estar imbuída de significados: tateava no escuro, achava que estava no coração do sol. Foi quando me esvaziei por completo e quebrei todos os ossos da alma. Ele fez de meu corpo odre de vinho novo. Me preencheu até o bordo.  Vivo agora em constante embriaguez na púrpura de Seu manto, no ouro de Seu olhar. Nas vinhas, nas vinhas da doçura.  O passado pregresso às vezes bate na porta da casa que não moro mais. Bate tanto que faz desmoronar aquele mausoléu vazio, onde nem os fantasmas se atrevem perambular. Fui salva de um jeito que homem nenhum alcança.  (A.)
"Assim é o brasileiro. Tem sempre uma piada fulminante. Não temos o dinheiro, mas temos a anedota que escorre, por entre os nossos dedos como água." (Nelson Rodrigues)

Oliveiras

no calor de Seu espírito existe um farol suados os homens de tez azeitonada salmodiam desatracam da cidade estrangeira não olham para trás vêm Seu filho na amurada do navio navegam, navegam em águas revoltas esperam em terra santa ancorar — lá poderão ser o sal lá estarão a salvo lá amarão o sol (A.)
A primeira crônica que li "rolou" quando eu estava na escola, acho que ainda no primário (na minha época era assim que se chamava). Foi com um livreto chamado "Para gostar de ler". Lembrança boa! Vida simples. Crianças Hora de dormir Fernando Sabino -Por que não posso ficar vendo televisão? -Porque você tem de dormir. -Por quê? -Porque está na hora, ora essa. -Hora essa? -Além do mais, isso não é programa para menino. -Por quê? -Porque é assunto de gente grande, que você não entende. -Estou entendendo tudo. -Mas não serve para você. É impróprio. -Vai ter mulher pelada? -Que bobagem é essa? Ande, vá dormir que você tem colégio amanhã cedo. -Todo dia eu tenho. -Está bem, todo dia você tem. Agora desligue isso e vá dormir. -Espera um pouquinho. -Não espero não. -Você vai ficar aí vendo e eu não vou. -Fico vendo não, pode desligar. Tenho horror de televisão. Vamos, obedeça a seu pai. -Os outros meninos todos dormem tarde, só eu

é preciso calar

 é preciso calar inflamando as urgências é preciso colar as distâncias é preciso colher para cada fome secreta é preciso colher o que plantou seu pé cada calo é escrito em língua morta

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Silencie. Não torne lassas as palavras Não as torne num emaranhado de teias: cedo ou tarde elas o grudarão no Coliseu dos cabotinos aprume seu cálice prepare dentes, língua, fígado. receba do veneno diário que com seu livre-arbítrio escolheu para sucedâneo das veias desse corpo-fábrica d’uma existência que é nada (A.)